domingo, 25 de novembro de 2012

desvio

Eram 4h30 e já levantara. Tinha o espasmo periódico do trabalho diário e das distâncias a percorrer. Lavou a cara e deixou ir pelo ralo os calos de uma noite mal dormida. Penteou o cabelo com a paciência de pretextos ou esperas, as crianças ainda não haviam acordado. Fio a fio, tentava desemaranhar as perguntas dos que iam a seu trabalho, ignorando sua presença como se se preparassem para um encontro maior, e questionavam sobre o valor metafísico da arte.  Não sabia o que era essa tal de metafísica. Entendia de metas, e jurava que muitas vinham da alma da gente. Certa vez bateu-lhe no peito a promessa do amor. 

Ainda que não compreendesse os princípios pelos quais se fez chegar ali, e não à casa de paredes brancas e janelas azuis pela qual sonhara a vida inteira, não faltaria amor a quem lhe conhecia do avesso: Tiago e Raimundo. Há de ter maior importância, pensava. O relógio apressava 5 horas, as dúvidas teriam de ser enroladas e presas. Fica pra depois.

Vinte minutos à frente o filho acorda com urgência de mãe. Trazia o corpo ainda preguiçoso de sono, mas os olhos escancarados pareciam bater asas. Correu pelo barraco vasculhando, procura rápida para um cômodo que servia de casa inteira. Mas latões e prateleiras são gigantes diante 9 anos e o medo de esquecer o sonho que precisava contar a mãe. Puxa vida, se Tiago não cismasse contar a coleção de pedras até tarde o sonho tinha durado menos e dava tempo de contar! Depressa lhe veio um jeito de guardar o segredo até oito da noite, hora de ter colo e promessa: catou uma pedra vermelha da coleção e rabiscou, imitando, o pássaro do sonho atrás da porta. Assim não esqueço.

Esperava. Enquanto isso, chuva. Pra ele a casa parecia um tambor. Tinha medo da chuva entrar dentro deles, de tão alta e perto. Pra afastar os sustos conversava com ela. Mãe dizia que a chuva também se sentia sozinha, e que era companhia pra gente. Foi se lembrando que a mãe contava que um lugar onde trabalha é todinho vermelho. Ele ria de desacreditar. Todinho assim, feito quando cortou o dedo brincando com Tiago e levou bronca? Todinho vermelho, como quando tio José derramou lata de tinta em cima da estante! Estremeceu com a revelação que veio de súbito: o pássaro vermelho havia fugido de lá pra dentro do seu sonho. Depressa levantou-se e saiu de dentro da minha cabeça. É  17 de novembro de 2011 e em fremes de segundo saí do Centro de Arte Contemporânea Inhotim enquanto visitava a Galeria Cildo Meireles para encontrar o menino dos vacilos da minha mente.

Diz a física que, devido à invariância da velocidade da luz no vácuo, e, admitindo um emissor e um receptor em repouso relativo, um raio de luz é captado como uma cor padrão em função de sua frequência. Se o emissor, a fonte, se afasta do receptor observador, o intervalo de tempo que este mede entre duas cristas consecutivas de onda aumenta, observando um desvio para a gama de cores de mais baixa frequência, fenômeno conhecido como desvio para o vermelho.

Há de ser essa mesma invariância de tempo e luz que criou em mim a imagem, quase tão palpável quanto os objetos do quarto, que responderam a passos imaginativos a ausência de um pássaro na gaiola pendurada na impregnação de Cildo. Voara para o sonho de um menino.

Nesse exato ponto, fugidio para os olhos da razão física mas completamente plausível para as permissões da arte, a onda de luz desviou-se atravessando os espaços contíguos instalados na galeria de Cildo Meireles  e adentraram um barraco localizado em Brumadinho, violando com um pássaro o sonho de um menino e os fazendo vermelho, para sempre.

Entrar nesta obra é quase uma violação do corpo, que se expande e se faz refluxo naquilo que nos usurpa diariamente, os objetos ali postos. Impregnados, fazem a lógica galopar e retornar em becos de cantos ao único ponto do qual não se pode fugir: vermelho. Há algo de intrigante e, ao mesmo tempo, habitual ali. É como ver continuamente o reflexo do reflexo. O cansaço vem de olhar e enxergar sempre a si. Talvez, o ponto do qual não se possa fugir seja este: eu.
  




sábado, 24 de novembro de 2012

o homem que virou pipa

Trazia no rosto a angústia de afetos desdenhados e a esquálida aparência da sarna. Possuía um andar manco, como se carregasse nos ombros toda a merda do mundo. Por muitos anos, haveria de se lembrar do dia em que imaginou que sua surrada pipa pudesse se transformar em pássaro. Lembraria disso, como um calo da memória que imputava aos olhos a doença de sonhar.

Não tinha mãe. Apenas a sensação de ter tido o ventre amputado do avesso. “Mulher morre ao tentar proteger filho de bala perdida no morro”. Às vezes a doença dos olhos cismava, e ele esquecia o azedo sufocante do latão em que fora encontrado e o qual o impregnava as narinas e os ossos, até o dia em que percebeu um estranho formigamento na alma. 

Tinha 33 anos. Idade na qual todos os homens atribuem a si o Cristo da justificativa e do legado terreno. Ele, apenas atribuía a si o propósito nato entranhado na carne de fazer ferir e apodrecer tudo quanto lhe nascesse no peito. Achava a Campanha da Fraternidade indigesta e mais uma babaquice que se tentava vender pela televisão e que poucos poderiam comprar. Era imune a todos os apelos.

Não sentia o tempo passar. Achava que era como ele, manco. Porque todas as horas tinham a estranha aparência do retorno e se calcavam nas paredes e nas goteiras que ele consertava mas que - porra! – voltavam a dar marteladas na testa enquanto dormia. Talvez por isso não sonhasse nunca.

Um dia as marteladas foram mais fortes e o hábito não mais pode fazê-las irrelevantes. O peso do tempo envergou-lhe as costas ao ponto de transformar-se em pedra, como um rei. Foi o dia em que percebeu uma coceira que vinha de dentro e que parecia vir da pressa de sentir. Sem presságio, arrebentou-lhe no peito um pássaro. E o resto é silêncio.

Ouro Preto, 2011.