sábado, 24 de novembro de 2012

o homem que virou pipa

Trazia no rosto a angústia de afetos desdenhados e a esquálida aparência da sarna. Possuía um andar manco, como se carregasse nos ombros toda a merda do mundo. Por muitos anos, haveria de se lembrar do dia em que imaginou que sua surrada pipa pudesse se transformar em pássaro. Lembraria disso, como um calo da memória que imputava aos olhos a doença de sonhar.

Não tinha mãe. Apenas a sensação de ter tido o ventre amputado do avesso. “Mulher morre ao tentar proteger filho de bala perdida no morro”. Às vezes a doença dos olhos cismava, e ele esquecia o azedo sufocante do latão em que fora encontrado e o qual o impregnava as narinas e os ossos, até o dia em que percebeu um estranho formigamento na alma. 

Tinha 33 anos. Idade na qual todos os homens atribuem a si o Cristo da justificativa e do legado terreno. Ele, apenas atribuía a si o propósito nato entranhado na carne de fazer ferir e apodrecer tudo quanto lhe nascesse no peito. Achava a Campanha da Fraternidade indigesta e mais uma babaquice que se tentava vender pela televisão e que poucos poderiam comprar. Era imune a todos os apelos.

Não sentia o tempo passar. Achava que era como ele, manco. Porque todas as horas tinham a estranha aparência do retorno e se calcavam nas paredes e nas goteiras que ele consertava mas que - porra! – voltavam a dar marteladas na testa enquanto dormia. Talvez por isso não sonhasse nunca.

Um dia as marteladas foram mais fortes e o hábito não mais pode fazê-las irrelevantes. O peso do tempo envergou-lhe as costas ao ponto de transformar-se em pedra, como um rei. Foi o dia em que percebeu uma coceira que vinha de dentro e que parecia vir da pressa de sentir. Sem presságio, arrebentou-lhe no peito um pássaro. E o resto é silêncio.

Ouro Preto, 2011.

Nenhum comentário:

Postar um comentário