Eram
4h30 e já levantara. Tinha o espasmo periódico do trabalho diário e das
distâncias a percorrer. Lavou a cara e deixou ir pelo ralo os calos de uma
noite mal dormida. Penteou o cabelo com a paciência de pretextos ou esperas, as
crianças ainda não haviam acordado. Fio a fio, tentava desemaranhar as
perguntas dos que iam a seu trabalho, ignorando sua presença como se se
preparassem para um encontro maior, e questionavam sobre o valor metafísico da
arte. Não sabia o que era essa tal de
metafísica. Entendia de metas, e jurava que muitas vinham da alma da gente.
Certa vez bateu-lhe no peito a promessa do amor.
Ainda que não compreendesse os
princípios pelos quais se fez chegar ali, e não à casa de paredes brancas e
janelas azuis pela qual sonhara a vida inteira, não faltaria amor a quem lhe
conhecia do avesso: Tiago e Raimundo. Há de ter maior importância, pensava. O
relógio apressava 5 horas, as dúvidas teriam de ser enroladas e presas. Fica
pra depois.
Vinte
minutos à frente o filho acorda com urgência de mãe. Trazia o corpo ainda
preguiçoso de sono, mas os olhos escancarados pareciam bater asas. Correu pelo
barraco vasculhando, procura rápida para um cômodo que servia de casa inteira.
Mas latões e prateleiras são gigantes diante 9 anos e o medo de esquecer o
sonho que precisava contar a mãe. Puxa vida, se Tiago não cismasse contar a
coleção de pedras até tarde o sonho tinha durado menos e dava tempo de contar!
Depressa lhe veio um jeito de guardar o segredo até oito da noite, hora de ter
colo e promessa: catou uma pedra vermelha da coleção e rabiscou, imitando, o
pássaro do sonho atrás da porta. Assim não esqueço.
Esperava.
Enquanto isso, chuva. Pra ele a casa parecia um tambor. Tinha medo da chuva
entrar dentro deles, de tão alta e perto. Pra afastar os sustos conversava com
ela. Mãe dizia que a chuva também se sentia sozinha, e que era companhia pra
gente. Foi se lembrando que a mãe contava que um lugar onde trabalha é todinho
vermelho. Ele ria de desacreditar. Todinho assim, feito quando cortou o dedo
brincando com Tiago e levou bronca? Todinho vermelho, como quando tio José
derramou lata de tinta em cima da estante! Estremeceu com a revelação que veio
de súbito: o pássaro vermelho havia fugido de lá pra dentro do seu sonho.
Depressa levantou-se e saiu de dentro da minha cabeça. É 17 de novembro de 2011 e em fremes de segundo
saí do Centro de Arte Contemporânea Inhotim enquanto visitava a Galeria Cildo
Meireles para encontrar o menino dos vacilos da minha mente.
Diz
a física que, devido à invariância da velocidade da luz no vácuo, e, admitindo
um emissor e um receptor em repouso relativo, um raio de luz é captado como uma
cor padrão em função de sua frequência. Se o emissor, a fonte, se afasta do
receptor observador, o intervalo de tempo que este mede entre duas cristas
consecutivas de onda aumenta, observando um desvio para a gama de cores de mais
baixa frequência, fenômeno conhecido como desvio para o vermelho.
Há
de ser essa mesma invariância de tempo e luz que criou em mim a imagem, quase
tão palpável quanto os objetos do quarto, que responderam a passos imaginativos
a ausência de um pássaro na gaiola pendurada na impregnação de Cildo. Voara para o sonho de um menino.
Nesse
exato ponto, fugidio para os olhos da razão física mas completamente plausível
para as permissões da arte, a onda de luz desviou-se atravessando os espaços
contíguos instalados na galeria de Cildo Meireles e adentraram um barraco localizado em
Brumadinho, violando com um pássaro o sonho de um menino e os fazendo vermelho,
para sempre.
Entrar nesta obra é quase uma violação do corpo, que se expande e se faz refluxo naquilo que nos usurpa diariamente, os objetos ali postos. Impregnados, fazem a lógica galopar e retornar em becos de cantos ao único ponto do qual não se pode fugir: vermelho. Há algo de intrigante e, ao mesmo tempo, habitual ali. É como ver continuamente o reflexo do reflexo. O cansaço vem de olhar e enxergar sempre a si. Talvez, o ponto do qual não se possa fugir seja este: eu.
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